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Mostrando postagens de dezembro, 2024

Por que tradução é uma estiva?

Tradução é uma estiva, acho que quem falou foi o Ivan Lessa, no Pasquim, no tempo da máquina de escrever — e era verdade. Podia ser fácil ou difícil, não importava. Tinha que bater aquilo tudo na máquina de escrever, letra após letra, página após página. Havia ainda os números, uma desgraça para quem traduzia finanças, como eu. O corpo ficava moído: doía perna, doía braço, doíam costas, doía tudo. Além disso, sempre faltava um parágrafo no meio e a gente tinha que montar com tesoura e cola. Depois, era revisar, mexer e remexer, até ficar bom. Dava dó, a sujeira que ficava. Precisava passar a limpo. Às vezes, quem passava a limpo era a secretária do cliente. Outras vezes uma datilógrafa autônoma. De um jeito ou de outro, tinha que revisar a datilografia e devolver para fazer as emendas. Um tempão para datilografar, um trabalhão para revisar, às vezes um dinheirão de datilografia — e o serviço era urgente. Muito disso acabaria se eu usasse um micro. Por exemplo, poderia mexer e remexer e...

Como foi meu primeiro encontro com tradutores

Nem me lembro como soube do evento. Isso foi lá nos idos de mil novecentos e setenta e poucos e, naquele tempo, não tinha Internet nem nada dessas frescuras: divulgar um evento não era fácil. Mas eu soube e lá fui, num sábado de manhã, todo esperançoso, para conhecer meus colegas de profissão, porque era um evento patrocinado pela ABRATES, no prédio do que se chamava então Faculdade Iberoamericana, FIA, para os íntimos, que depois virou Unibero, foi comprada pelo Grupo Anhanguera. Agora, o prédio foi demolido. Era na Brigadeiro Luiz Antônio 871. Chegando lá, topei com um bando de jovens, quase todos alunos da Faculdade, que, animadíssimos, estavam procurando se integrar no ambiente. Encontrei lá a Ivete, uma velha amiga que vou chamar de Ivete pelo simples motivo de que ela não se chamava Ivete, se me faço claro. O diálogo foi surreal. —Danilo! Você aqui! — Ivete! Que surpresa, menina! — Que que você anda fazendo, Danilo? Fiquei surpreso. Afinal de contas, aquilo era uma reun...

Como traduzi meu primeiro livro

Botei uma folha de papel de jornal formato ofício na minha briosa Olivetti 44 semiportátil, que eu chamava, carinhosamente a azeitonhinhas . Escrevi, em maiúsculas, ANÁLISE DAS DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS, dei na alavanca de entrelinha (a mamãe da tecla enter ), escrevi John N. Meyer , dei mais umas entrelinhas e escrevi, borbulhando de orgulho: Traduzido por Danilo Nogueira. Mas nada de itálico, claro, porque máquina de escrever não tinha essas frescuras. Tirei a folha da máquina, pousei do meu lado, com a parte escrita para baixo, e comentei com a Vera, que estudava para o vestibular sentada perto de mim: ganhei dez cruzeiros. Porque a Atlas pagava Cr$ 10,00 por lauda, o mesmo que a Fisk pagava por uma hora de aula interna, e eu tinha acabado de datilografar minha primeira lauda. Porque era assim que um tradutor todo modernoso fazia nos tempos d’antanho. Digo modernoso , porque a maioria dos tradutores ainda traduzia em manuscrito, usando folhas de papel almaço e, muitas vezes, ca...

Um de meus (muitos) fracassos como tradutor

O Facebook me informou que sábado, 14 de dezembro de 2024, a Angela Levy completou 92 anos. Postei meus parabéns na página dela, mas não resisto à tentação de contar para você a história de um de meus fracassos mais dolorosos. Eu já estava me equilibrando como tradutor profissional, mas sentia que seria ótimo fazer um curso de tradução. O problema é que, como nunca concluí o ensino médio, não tinha como entrar no curso da Ibero, novidade que, na época, fazia furor em São Paulo. Um belo dia, me contaram que a Associação Alumni tinha montado um curso livre de tradução e que, para entrar, precisava fazer um testezinho, mas não tinha que apresentar diploma de nada. A Alumni, para quem não sabe, tem uma excelente reputação em São Paulo e o curso deles só podia ser ótimo. Então, fui lá, todo garboso e esperançoso, fazer o testezinho de qualificação. Cheguei lá, descobri que o curso tinha grande ênfase na interpretação, quer dizer, trabalho oral, quando meu interesse é, e sempre foi a t...

Do primeiro teste de tradução, a gente nunca esquece…

 Prosseguindo com a novelinha… No dia seguinte, como combinado pelo telefone, fui até a Editora Atlas, conversar com o assistente do diretor editorial, que me deu um teste de duas laudas, para fazer em casa. Também me deu duas folhas de instruções, que lamento ter perdido por aí. Entre outras coisas, diziam que os nomes geográficos deveriam ser traduzidos para o português, quando possível. Dava com exemplo Sandwich Islands, que deveria ser traduzido por Ilhas Sanduíche.     Explicava, também, o que a Editora Atlas entendia por lauda: uma folha de papel formato ofício (22 cm × 32 cm), datilografada de um lado só, com fonte paica em espaço duplo, 3 cm de margem superior e 2 cm para as outras margens. Levei para casa, traduzi, revisei, passei a limpo tudo na minha possante Olivetti 44, (mecânica, de barras) e voltei à Atlas para entregar o teste. Note que essas idas e vindas eram todas pessoais e de ônibus, que a Internet só foi aberta aos mortais comuns vinte anos d...

Como consegui meu primeiro livro para traduzir

Como disse nas duas últimas postagens, comecei minha carreira de tradutor na Arthur Andersen, uma firma de auditoria. Auditoria, caso você não saiba, é um ramo da contabilidade. Comecei, porque precisava de dinheiro, mas logo de cara, me encantei com a tradução. Não que eu soubesse o que estava fazendo, mas, para gostar, não é necessário saber. Mas eu pensava que sabia e, todo confiante, disse à Vera, minha mulher, que ia arranjar mais serviço de tradução. Isso porque na Arthur Andersen eu trabalhava só das oito ao meio dia e, embora o pagamento fosse bom, como era só meio período, não dava para cobrir as despesas. Minha mulher não botou muita fé, mas eu estava animado. E achei que o jeito de conseguir serviço como tradutor era telefonar para as editoras. Naquele tempo, havia pouquíssimas agências e, inexperiente que eu era, não conhecia nenhuma. Então, era editora mesmo. Problema: meu sogro, em cuja casa eu estava morando de favor, não tinha telefone. Então, fiz o que se fazia n...

Como perdi minha inocência tradutória

A postagem de ontem, sobre como virei tradutor , causou tanto interesse, que me deu ânimo para continuar a história. Não, não tem nada de emocionante, mas acho que você vai gostar. A Arthur Andersen era uma das oito maiores firmas de auditoria do mundo (hoje são só quatro) e, juntamente com suas concorrentes, tinham combinado de traduzir um tal de Intermediate Accounting, um calhamaço sobre contabilidade escrito por alguém cujo nome agora me escapa, a ser publicado por uma editora, sob o patrocínio de uma instituição de ensino superior. Caso você não saiba, a base da auditoria é a contabilidade. Me deram um pedaço do livro para traduzir. Digo “um pedaço” porque a instituição que ia patrocinar a publicação tinha rasgado um exemplar do livro físico em pedaços e dado um naco para cada uma das oito grandes firmas de auditoria, todas as quais tinham escritórios em São Paulo. A ideia era depois juntar a colaboração das oito e enviar a uma editora, para que preparasse a edição brasilei...

Como virei tradutor

Deixa contar como virei tradutor. Estava descendo a escada da Fisk da rua Francisca Miquelina, em São Paulo, depois de dar mais uma aula de duas horas, quando o Lima, que era secretário da escola, me chamou: — Danilo, quer fazer umas traduções? Ora, depois de um retumbante fracasso como dono de escola em Porto Alegre, eu estava na miséria, morando de favor na casa do meu sogro, que não ia com a minha cara. Humilhação maior, é difícil haver. Naquele tempo, 1970, não se entendia tradução como profissão. Era, simplesmente, alguma coisa que quem pensava que sabia uma língua estrangeira fazia, nas horas vagas, para ganhar uns trocados. À medida que o Lima ia me explicando as condições, meu interesse pelo encargo crescia: eram quatro horas por dia, cinco dias por semana, sem janelas. O pagamento era pela taxa de aula externa, ou seja, 50% a mais do que as aulas internas. Qualquer pessoa que tenha trabalhado em escola de inglês sabe o que isso significava. No outro dia, às oito da...