Por que tradução é uma estiva?
Tradução é uma estiva, acho que quem falou foi o Ivan Lessa, no Pasquim, no tempo da máquina de escrever — e era verdade. Podia ser fácil ou difícil, não importava. Tinha que bater aquilo tudo na máquina de escrever, letra após letra, página após página. Havia ainda os números, uma desgraça para quem traduzia finanças, como eu. O corpo ficava moído: doía perna, doía braço, doíam costas, doía tudo. Além disso, sempre faltava um parágrafo no meio e a gente tinha que montar com tesoura e cola. Depois, era revisar, mexer e remexer, até ficar bom.
Dava dó, a sujeira que ficava. Precisava passar a limpo. Às vezes, quem passava a limpo era a secretária do cliente. Outras vezes uma datilógrafa autônoma. De um jeito ou de outro, tinha que revisar a datilografia e devolver para fazer as emendas. Um tempão para datilografar, um trabalhão para revisar, às vezes um dinheirão de datilografia — e o serviço era urgente.
Muito disso acabaria se eu usasse um micro. Por exemplo, poderia mexer e remexer enquanto traduzia. Depois era só imprimir. Nunca mais ia precisar passar a limpo. Eu sonhava com um micro, mas faltava dinheiro: computador era caro e impressora, caríssima.
Um dia, veio uma encomenda muito grande. Brincando, disse ao cliente que, no prazo que ele queria, nem com um computador: precisava de dois, um para mim, outro para minha falecida mulher, que trabalhava comigo. Depois, fui ficando tão entusiasmado, que ele acabou financiando as máquinas.
Fomos dos primeiros a usar computador e eu exibia orgulhoso os trabalhos feitos com computador MicroEngenho2 e uma impressora Mônica. Hoje, quase todo tradutor tem micro e nós sonhamos trocar os 386 por 486 e a LaserJetIIIp por uma que imprima em cores - mas falta dinheiro. Não pagamos mais datilógrafa, mas o que gastamos de equipamento, programas e livros não é pouco.
O trabalho ficou melhor e mais fácil: é só digitar o texto, mexer e remexer sem dó, tirar os erros piores com o revisor ortográfico, imprimir, mandar ao cliente por fax ou disquete, alterar o que ele pedir, imprimir de novo e entregar junto com o disquete.
Ficamos mais exigentes: antes, não tendo erros, chegava. Agora, passamos horas polindo estilos e diagramando balanços, até ficarem como queremos. O cliente também está mais exigente e acomodado: copia nosso trabalho diretamente em seu papel timbrado, para poupar custo e tempo. Por isso, pede para alterar a diagramação ou emendar meia dúzia de páginas porque quer mudar algum dado no original - e é urgente.
No fim do da, o corpo está moído, dói perna, dói braço, doem costas, dói tudo - e os olhos ardem. O micro mudou nossos métodos e nosso produto. Mas tradução ainda é uma estiva.
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O texto acima foi escrito por mim e publicado pelo jornal “O Estado de São Paulo, "Estadão", para os íntimos, no dia 2 de agosto de 1993, no Caderno de Informática, que então saía nas segundas feiras. Numa arrumação de papelada, topei com ele e achei que valia a pena reciclar aqui. Agora, tantos anos depois, não se manda mais serviço para aprovação via fax nem se entrega a forma final em disquete: vai tudo via Internet. Entretanto, no fim do dia, o corpo está moído, dói perna, dói braço, doem costas, dói tudo - e os olhos ardem. O computador mudou nossos métodos e nosso produto. Mas tradução ainda é uma estiva.
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