Vendendo gato por lebre: os subterrâneos da tradução

Isso foi lá para 1975.

A gente tinha acabado de mudar e estava tendo uma daquelas conversas de apresentação com a vizinha. Lá pelas tantas, ela perguntou o que eu fazia e eu disse que era tradutor. Respondeu que seu filho também era tradutor, completando, não sem um certo orgulho, que o rapaz trabalhava para uma certa escritora, até hoje conhecida, mas que não posso citar por nome, porque não disponho de provas.

Foi aí que eu tomei conhecimento do sombrio mundo dos bagrinhos, aqueles profissionais que fazem traduções para os figurões das letras assinarem e pagarem de tradutor.

Não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, muito pelo contrário. Paulo Rónai, na “Escola de Tradutores”, nos conta a história de Frigyes Karinthy, escritor húngaro que assinava traduções feitas pelos seus bagrinhos. Deriva do fato de que muita gente — inclusive tradutores e acadêmicos — acredita que as melhores traduções literárias são feitas por bons escritores. Balela: nada impede que um bom escritor seja um bom tradutor (ou cozinheiro, ou trombonista ou o que seja), mas também nada impede que um bom escritor seja um péssimo tradutor. Quer dizer, cada caso é um caso.

Circulam várias histórias sobre escritores conhecidos e seu uso de bagrinhos, mas não vou contar nenhuma delas aqui, porque não tenho provas. Uma, porém foi tirada a limpo pela Denise Bottmann, que encontrou 30 traduções creditadas a Nelson Rodrigues, que nunca traduziu coisíssima nenhuma na vida, até porque só sabia português. Dê uma olhada aqui. A falcatrua foi considerada pela editora, na época, mero recurso comercial, algo até divertido. Na verdade, é um desrespeito ao público leitor e aos profissionais que fizeram o trabalho.

Resta lembrar que, quando você encontrar uma tradução assinada por algum figurão da nossa literatura, tenha em mente que o tradutor de fato pode muito bem ser algum bagrinho.

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