Portas ferradas

Tragicomédia tradutória em três atos e um epílogo. Os nomes foram trocados, mas a história é autêntica.

Antigamente, não tinha Internet: a gente ia ao escritório do cliente. Dá para imaginar? E toda tradução vinha em papel. Dá para imaginar? E, nas tabelas, para reduzir custos e abreviar prazos, a gente não digitava os números, só o texto. O “pool” de secretárias do cliente passava tudo a limpo, no papel timbrado deles, copiando os números do original. Às vezes, o original vinha manuscrito.

Isso tudo para introduzir uma história de que até hoje dou risada. Fui entregar a um cliente um serviço pronto, mas com uma dúvida. Um item, em um demonstrativo, me escapava ao entendimento: “portas ferradas”. Que raio é uma porta ferrada?

Levei o serviço ao cliente, uma firma de auditoria, e comecei minha via crucis pelo gerente encarregado do serviço.

Ato I: Dramatis personae: 

Danilo Nogueira, Tradutor, 

Genésio Gerente, Gerente de auditoria. 

Cenário: sala de gerente de auditoria, papéis por todo lado.

– [Danilo] Genésio, o que são “portas ferradas”?

– [Gerente] (Sem levantar os olhos do papel, para indicar que tinha mais que fazer do que falar comigo) Eu é que sei?

– [Danilo] Está no relatório da Xpeteosa, com a sua assinatura.

– [Gerente] Eu assinei, mas quem fez foi o Antônio Auditor.

– [Danilo] Pergunta para ele, por favor.

– [Gerente] Está fora, em outro cliente, não posso ligar.

– [Danilo] Bom, então, não posso entregar o serviço.

– [Gerente] O prazo que você deu era hoje.

– [Danilo] Mas se o texto não faz sentido, não posso traduzir.

– [Gerente] Como, não faz sentido?

– [Danilo] “Portas ferradas” não faz sentido.

– [Gerente] Como, não faz sentido? Deixa ver esse troço. Está aqui, claro, letra boa, fácil de ler, só ter boa vontade, (uma indireta normal, a gente finge que não entende) p-o-r-t-a-s f-e-r-r-a-d-a-s. Entendeu?

– [Danilo] E o que são “portas ferradas”?

– [Gerente] Eu é que sei? Lá sei eu, coisa do cliente. O tradutor é você, cara. Sabe o que é porta, sabe o que é ferrada? Então, meu, se vira!

– [Danilo] A gente ferra cavalo e burro, não porta.

– [Gerente] Ah, Danilo, se vira, eu estou ocupado.

– [Danilo] Vou falar com o Sérgio Sócio, então.

– [Gerente] Se você conseguir… Ele está em reunião.

Ato II: Dramatis personae: 

Danilo Nogueira, Tradutor, e 

Cenossélia Secretária, 

Cenário: sala de secretária em firma de auditoria, papéis por todo lado.

– [Danilo] Cenossélia, bom dia, preciso falar com o Sérgio Sócio.

– [Cenossélia] Por quê? Não pode. Ele está em reunião com um cliente importante.

– [Danilo] Porque tem uma dúvida no relatório da Xpeteosa.

– [Cenossélia] Que dúvida? Deixa ver que eu resolvo.

– [Danilo] O que são “portas ferradas”?

– [Cenossélia] (Tentando desviar a conversa) Para que você quer saber disso?

– [Danilo] Está no relatório e eu não sei o que é.

– [Cenossélia] Ué, traduz e manda pra frente.

– [Danilo] Não se pode traduzir o que não se entende. É por isso que não traduzo russo: porque não entendo russo.

– [Cenossélia] Procurou no dicionário?

– [Danilo] Sim, não tem.

– [Cenossélia] Como, não tem? Porta ferrada, não tem? Tem porta, ao menos, esse teu dicionário? (Depreciar o equipamento ou os conhecimentos do outro, quando não se tem uma resposta, faz parte do jogo) Tem o verbo ferrar, pelo menos?

– [Danilo] Sim, tem os dois, mas não faz sentido.

– [Cenossélia] Como não faz sentido? “Portas ferradas”, não faz sentido?

– [Danilo] Para mim, não. Para você faz?

– [Cenossélia] Claro!

– [Danilo] Então, me explica.

– [Cenossélia] Você é chato. Vou ter que interromper uma reunião do chefe por tua causa.

– [Danilo] Por minha causa, não. Por causa de quem me entregou um texto sem pé nem cabeça.

– [Cenossélia] O texto está perfeito. Você é que não entende.

– [Danilo] Então, me explica, já pedi.

– [Cenossélia] [No telefone] Dr. Sérgio, o Danilo está aqui, com um problema com o relatório da Xpeteosa. Diz que não pode entregar sem resolver. … Tá, obrigado. [Para mim] Pode entrar!

Ato III: Dramatis personae: 

Danilo Nogueira, Tradutor, 

Sérgio Sócio e 

Cláudio Cliente, gerente da Xpeteosa. 

Cenário: sócio, papéis por todo lado.

– [Danilo] Bom dia, desculpe interromper, tem um trecho aqui no relatório da Xpeteosa que eu não entendi bem.

– [Sérgio] Opa, você chegou na hora certa. O Cláudio aqui é gerente da Xpeteosa. Se alguém nesse mundo sabe, é ele mesmo. Pergunta para ele.

– [Danilo] Prazer, Cláudio! Me conta uma coisa, que são “portas ferradas”?

– [Cláudio] Prazer, Danilo! “Portas ferradas”? Não faço ideia. Deixa ver. [Pega o relatório na mão, examina, dá uma gargalhada.] São porta-ferramentas!

– [Danilo] Ah, obrigado. Porta-ferramentas eu sei o que é.

– [Sérgio] Resolvido? Quando fica pronta a tradução?

– [Danilo] Em coisa de minutos, é só avisar as datilógrafas. Então, até logo e, mais uma vez, obrigado.

Epílogo: 

Dramatis personae: 

Danilo Nogueira, Tradutor, e 

Cenossélia Secretária

Cenário: sala de secretária em firma de auditoria, papéis por todo lado.

– [Cenossélia] Resolveu?

– [Danilo] Sim.

– [Cenossélia] E?

– [Danilo] Eram “porta-ferramentas”, não “portas-ferradas”.

– [Cenossélia] E como é que você não notou?

Pano rápido.


Comentários

  1. Ri em voz alta aqui. "A gente não consegue traduzir o que não entende." Óbvio, mas difícil de explicar muitas vezes.

    ResponderExcluir
  2. HAHAHAAHH genial! Essas histórias valem ouro!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Dicas para tradutores novatos

Melhor gramática portuguesa para quem traduz

Aventura: o dia em que revisei uma tradução para o inglês feita por uma tradutora inglesa