Volta às atividades e mensagem de Natal

Esta publicação marca minha volta ao blogue e à minha página profissional no Facebook, que abandonei há mais tempo do que gostaria de admitir. As novas postagens vão começar dia 3 de janeiro de 2022. Espero que você goste e me faça companhia.

Escrevi o texto abaixo há muitos anos, como mensagem de Natal para os colegas da trad-prt. Esqueci dele, até que me pediram permissão para publicar no PLData, o boletim da Divisão de Língua Portuguesa da ATA. Com duas ou três pequenas mudanças, republico aqui. São memórias de minha infância, coisas que eram verdade para mim entre 1948 e 1950, quando eu morava no Brás, um bairro pobre de São Paulo. Hoje, provavelmente, seriam consideradas politicamente incorretas. Durante anos, republiquei todo dia de Natal no blogue. Este ano, republico aqui. 

Meu mundo se restringia a uma quadra da Rua Campos Sales, entre Aristides Lobo e Martin Burchard, somada à casa de alguns parentes e ao Liceu Vera Cruz, que ficava na rua Piratininga. Éramos todos católicos, evidentemente. Minha mãe, até morrer, considerava o catolicismo como “a religião” e se referia a quem não fosse católico dizendo que “não é religioso”. Claro, tinha os protestantes, mas esses protestavam contra não sei o quê, os padres deles não se chamavam “padres” e ainda por cima se casavam, o que me parecia certo, mas era pecado, como o Padre Jesuíno ensinava no catecismo, mas só tinha nos Estados Unidos. A dona Elvira frequentava centro espírita, mas isso, na época, não era não ser católico: todo mundo era e ela também. Espiritismo era um pouco de pimenta malagueta que a gente botava no catolicismo. Uns botavam sempre, outros só quando a situação parecia mais preta e exigia, digamos, remédios heroicos. Mas ir ao centro espírita não descaracterizava ninguém de católico.

Tinha também os turcos, que não acreditavam em Deus, mas tinham lá o deus deles, que se chamava Alá e tinha até uma música de carnaval meio antiga que falava dele. Mas turco só tinha em fita de cinema e eles eram diferentes, usavam camisola e turbante. Tinha também os judeus, mas esses só apareciam naquele filme terrível e horrível chamado o Rei dos Reis que passava na sexta-feira santa no Ideal, um cinema que tinha mais pulgas que espectadores e minha mãe me levava para ver e eu odiava porque era mal feito e chato. Só tinha um pedaço bom que era uma grossa pancadaria na frente duma igreja muito grande. Que Roy Rogers era bem melhor, isso era, mas na semana santa era pecado, então não tinha. Mas judeu também era um tipo de turco que também usava camisola e eu nunca tinha visto nenhum desses no Brás. Na verdade, judeu e turco só tinha mesmo no cinema e todo mundo sabe que cinema é tudo de mentirinha: tanto que a gente vê o filme de novo e o cara que tinha morrido tá vivo e dando tiro de montão. Então a gente, nesta época do ano, desejava feliz natal e feliz ano novo para todo mundo. E todo mundo ficava satisfeito. Não fazer isso era prova de grossa falta de educação.

Agora, mudou tudo e eu já não sei o que fazer. Uma porção de gente que eu conheço e de quem gosto não é católica. Eu mesmo me afastei da igreja há mais de quarenta anos. Desejar feliz natal para judeu e muçulmano é falta de cortesia e não é PC, apesar de que muitos dos meus amigos judeus acham graça e, piscando o olho, respondem com um sorriso quando se lhes pergunta qual o seu nome de batismo. Alguns dos meus vizinhos e meu carteiro são da Assembleia de Deus, que não comemora Natal, significando, entre outras coisas, que o Luís, que fielmente nos entrega montes de correspondência, jamais pede caixinha e a gente nunca sabe se, em dando, ofende o homem. Vida complicada, esta.

Então, a gente começa a desejar feliz ano novo. Mas os judeus têm seu próprio ano novo, os muçulmanos o deles e os chineses também – sem contar que os russos começam o deles algo mais tarde do que os ocidentais, pelo que são alvo de inúmeras piadas. O Paulo Maluf e tantos dos meus vizinhos do bairro do Paraíso, em São Paulo, eram melquitas. Alguém sabe quando os melquitas comemoram Natal, se é que o comemoram? Que fazem um bom quibe, isso fazem. Lá sei eu como anda o ano novo dos armênios e dos eslobóvios, quando não seja por alguma tribo indígena obscura que tenha virado ícone da preservação cultural e para a qual tenham inventado algum festival de que os membros mais velhos da tribo, guardiões da tradição, nunca tenham ouvido falar. É uma seca isto, como dizia o Zé Maria. Tem até uns exageros que me parecem demais. Conta-se do padre de Nanuque que se benzia dizendo “Em nome do Pai, do filho e de Minas Gerais”. Não sei se é verdade, mas é uma boa história. Chegamos ao amargo ponto em que desejar felicidades a alguém pode ser uma ofensa. Eu próprio acho que esse negócio de Natal e ano novo não tem nada a ver: a vida continua do mesmo jeito. E para mim, Natal ou João Pessoa é tudo o mesmo. Mas é como o domingo: eu não acho sagrado coisa nenhuma, mas se a gente tem de escolher um dia para descansar (ou cobrar taxa de urgência), então que seja o domingo. Não idolatro tradições, mas também não vejo motivo para acabar com elas a cacetadas só por serem tradições. Por isso, chega esta época do ano e a gente deseja felicidades aos amigos, mesmo aos que caírem de pau em cima de mim por alguma incorreção política encontrada nesta mensagem.


Comentários

  1. Feliz Natal e um Ano Novo sem Covid! As festas têm uma lógica, o Natal coincide com o solstício de inverno no hemisfério norte e nesta mesma data era comemorada a festa do Sol Invicto do mitraísmo. Judeus, muçulmanos, budistas, ateus, todos podemos admirar a vida, o exemplo e os ensinamentos de Jesus!

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