São Jerônimo

Republico hoje um texto datado de 2016, apropriado para o dia do tradutor, que acho uma das melhores coisas já publicadas no meu blogue antigo. Preciso falar com o Asnaldo, a ver se volta a prestigiar e valorizar este blogue. Leiam e divirtam-se.


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Publicamos hoje um interessante texto de nosso mais novo colaborador, Asnaldo Cenossão Jr., PhD, RSVP, RFFSA sobre a história da tradução. Esperamos que seja do agrado de todos. Espero ter a chance de publicar mais textos dele em futuro próximo.


APONTAMENTOS PARA UMA HISTÓRIA DA TRADUÇÃO
Asnaldo Cenossão Jr., PhD, RSVP, RFFSA


Eusebius Sophronius Hieronymus nasceu na cidade que os romanos chamavam Strido Dalmatiae e que, em português, segundo as regras normais de derivação, deveria chamar-se Estridonte da Dalmácia, o que é um nome horrível, para uma cidadezinha que também não deve ter sido grande coisa. A cidade desapareceu, com o que aparentemente não se perdeu muito, mas dizem que era perto de onde hoje fica Ljubljana, na atual Eslovênia, cidade que os alemães chamam Leibach, aparentemente porque, ao menos para eles, é um nome mais fácil de pronunciar.


Isso foi lá para o ano 347. Quer dizer, faz tempo pra burro.


Pois bem! Isso se deu antes da Reforma Protestante, que só veio muito depois, e mesmo antes do tal do Cisma do Oriente, que veio antes dela. Portanto, na época em que viveu Eusebius Sophronius Hieronymus o cristianismo era ainda uno e indiviso e tinha sua sede indiscutível na cidade de Roma, que fica na Itália, e seu chefe era o bispo da cidade, que tinha (e ainda carrega) o título de "Papa".


Pois bem. Naquele tempo, a Cristandade estava em crise. De modo geral, tudo está eternamente em crise, mas é impossível fazer história sem dizer que se estava em crise, ou saindo de uma crise ou entrando numa crise, então a gente tem que dizer que aquilo de que falamos, neste caso, “a Cristandade”, estava em crise.


Permita-se-nos detalhar.


O Cristianismo é uma religião escritural, quer dizer, uma religião que se apoia em certos escritos, considerados sagrados pelos fieis. Os escritos sagrados cristãos se dividem em dois grupos: Antigo Testamento e Novo Testamento. O Antigo Testamento é, na verdade, composto das escrituras sagradas judaicas e, por isso, estava (e está) escrito em hebraico e aramaico, embora tenha uma tradução muito antiga para o grego de que falamos em algum outro canto.


O Novo Testamento já é propriamente cristão. Os primeiros cristãos eram judeus, sem dúvida, mas, como pretendiam divulgar sua crença para todo o mundo, resolveram escrever suas escrituras em grego, que era o inglês da época, em vez de em hebraico, que quase ninguém mais entendia, ou aramaico, que só era entendido pelos judeus mesmo e mais uma meia dúzia de gatos pingados.


Escreveram, assim, então, num greguinho meio simplified, meio buquitu, que era realmente para ser entendido por todos. Isso daí se chama “grego do Novo Testamento” e é um subconjunto do que se chama grego coinê, que já era bem mais simples que o grego clássico do século de Péricles. Mas estava valendo.


Acontece que o cristianismo foi se estendendo para o ocidente, onde tudo aquilo era grego e onde, no tempo de Eusebius Sophronius Hieronymus, só se falava latim. Já havia umas traduções para o latim mas não dava muito para confiar nos textos porque eram meio do tipo belles infidèles, sabe, aquela coisa da voz do tradutor e tal.


Isso posto, vai que o Eusebius Sophronius Hieronymus era um sujeito muito religioso e muito inteligente e acabou virando secretário do Papa, entre outras coisas porque, tendo nascido em Estridonte da Dalmácia, sabia grego muito bem sabido, o que era importantíssimo na época. Também sabia hebraico e aramaico, mas não era lá essas coisas.


Eis que senão quando um dia o Papa chamou seu secretário e pediu que ele desse um jeito naquilo, que produzisse uma Bíblia que se prezasse, porque o que havia era uma vasta meleca.


Note que, já naquela época, o cara que queria uma tradução, em vez de chamar um profissa e pagar um preço que prestasse, apelava para o secretário e pedia para dar um jeito no troço. Lembre-se de que, naquelas alturas, secretário era tudo homem, não mulher. Quer dizer, mutatis mutandis, não mudou nada.


Mas, assim, era muito serviço e o Eusebius Sophronius Hieronymus sequer tinha máquina de escrever, quanto mais computador. Trados, então, nem pensar. Wordfast e MemoQ ainda não tinham sido inventados. Quer dizer, era barra. Além disso, havia um problema de prazo, porque o Papa queria ver aquilo tudo pronto antes de morrer e ninguém realmente sabe quando vai morrer.


Para piorar, havia um problema de verba, porque o budget da Santa Sé estava meio restrito, dada a crise (sempre há uma crise, como dito acima).


Sendo assim, e sendo tudo um trabalho institucional, comunitário e sem fins lucrativos, Eusebius Sophronius Hieronymus resolveu fazer um crowdsourcingzinho básico, convocando para isso várias senhoras cultas conhecidas dele que levavam jeito para a coisa. As participantes não ganharam badges, como a turma que camelou para o Facebook na faixa, mas quem traduz a Biblia a leite de pato espera outro tipo de recompensa. Deram uma boa guaribada no que havia traduzido, traduziram o que faltava e produziram o que se conhece hoje por “Vulgata”.

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